segunda-feira, 14 de março de 2011

O Fenômeno Religioso


XIII Congresso Brasileiro de Sociologia
29 de maio a 01 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE).
Grupo de Trabalho: GT14 - O Fenômeno Religioso
Coordenação: Eduardo Gabriel (USP), Lísias Negrão (USP), Péricles Andrade Jr. (UFPE).

Título do trabalho: Federação, terreiros e cultos domésticos: legitimidade de culto e
relações existentes no campo religioso afro-brasileiro da cidade de Areia Branca-RN.
Nome do(a) Autor(a): Eliane Anselmo da Silva (Doutoranda do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia)
Instituição: Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
e-mail para contato: elianeanselmo1@yahoo.com.br
Federação, terreiros e cultos domésticos: legitimidade de culto e relações sociais no
campo religioso Afro-brasileiro da cidade de Areia Branca-RN.
Autor(a): Eliane Anselmo da Silva
Resumo: o presente trabalho propõe uma discussão acerca das relações existentes no
campo religioso Afro-brasileiro, a partir do exemplo da cidade de Areia Branca - RN, onde
Federação, terreiros e cultos domésticos, enquanto “níveis de organização de culto”,
apesar de relacionados, respondem a exigências diversas. Cada um desses níveis de
culto assumem um papel dentro do campo religioso, e a legitimidade do culto, adquirido
pelo documento da “licença”, vai nortear as relações existentes nesse campo, ora de
alianças, ora de tensões. Ainda a partir dessa discussão, proponho um novo olhar para a
religião Afro-brasileira; não mais voltado exclusivamente para terreiros e federações, mas
para as práticas cotidianas nessa religião, expressadas pelos cultos domésticos, que em
nossa concepção indicam novas formas de manifestações religiosas da vida
contemporânea.
Palavras-chave: federação, terreiros, cultos domésticos, legitimidade, relações, práticas
cotidianas.
Introdução
Este trabalho é parte da discussão trazida em nossa dissertação de mestrado, resultado
de nossa pesquisa sobre os cultos afro-brasileiros na cidade de Areia Branca, Rio Grande
do Norte. Quando utilizamos a palavra “culto”, concordamos com o atual conceito adotado
por vários antropólogos, onde: “Culto é a soma total das crenças e ritos organizados, com
referência a um ou vários espíritos, geralmente associados com objetos e lugares
específicos, juntamente com a adoração ritualística e com os oficiantes” (Dicionário de
Ciências Sociais, 1987; pág. 287).
Os Cultos Afro-brasileiros são, de modo geral, certas práticas religiosas,
hoje existentes em quase todo o Brasil, que têm ligação, próxima ou remota, com os
cultos trazidos pelos africanos introduzidos como escravos no país. Esses cultos recebem
nomes diferentes segundo as várias regiões do país, como por exemplo: tambor de mina,
no Maranhão; batuque, no Pará; catimbó, em grande parte do nordeste; pajelança, no
norte; xangô, em Pernambuco; candomblé, na Bahia; macumba, no Rio de janeiro e São
Paulo; e umbanda, existente em quase todo o Brasil.
Os cultos denominados Afro-brasileiros não são homogêneos e possuem
detalhes litúrgicos variáveis, apesar de possuírem também elementos comuns, como o
panteão de divindades, a possessão etc. Essas características, próprias dessas religiões,
podem ser encontradas em vários autores, notadamente em Nina Rodrigues, Roger
Bastide, Edson Carneiro, Pierre Verger, entre outros.
A tradição Afro-religiosa na cidade de Areia Branca – RN, consta da
umbanda, onde elementos do espiritismo kardecista, do catimbó-jurema do nordeste e do
catolicismo, se mesclaram, a partir de um processo de formação e organização de culto
específico, mas bastante comum no Brasil. Recentemente também o candomblé se fez
presente na cidade, diversificando ainda mais o campo ritual da religião Afro-brasileira em
Areia Branca.
Originariamente sob a forma de “mesa branca”, como os próprios adeptos
denominam, a umbanda que surge na cidade de Areia Branca assemelha-se a “sessão de
mesa” ou “mesa de catimbó”, comuns nos catimbós-jurema nordestinos, onde os médiuns
se reúnem em volta de uma mesa, composta por elementos rituais específicos para
praticar suas atividades religiosas. Naquele momento em que surgia a religião, as
atividades eram de orientação, doutrinação e formação de médiuns, que seriam os futuros
donos de centros ou terreiros da cidade. Constituiu-se assim uma forma ritual de “religião
mediúnica, popular no seu conteúdo e kardecista em sua forma” (MOTTA idem
ASSUNÇÃO, 1999).
A “mesa branca” que caracteriza as formas originárias da religião Afrobrasileira
em Areia Branca diferencia-se das tradicionais sessões de catimbó. Não
existiam, por exemplo, elementos como a “princesa”, espécie de bacia de louça utilizada
no ritual, e também não existia a presença do “mestre”, “entidade espiritual central dos
catimbós nordestinos” (CASCUDO idem ASSUNÇÃO, 1999). As principais entidades que
estavam presentes na mesa branca eram os caboclos e os pretos velhos, assim também
como os exus, que atualmente já podem ser encontrados caracterizados como mestres, a
partir de uma evolução doutrinária no plano espiritual da religião. O contexto em que
surgia a religião na cidade, datado entre as décadas de 30 e 40 do século passado, tendo
em vista a repressão histórica que sofreram as religiões afro-brasileiras no país, conferialhe
um caráter doméstico e privado, devido ainda a inexistência de terreiros e centros
espíritas, ainda em formação. Esses rituais de mesa branca eram assim, realizados na
residência de algum dos adeptos, até que surgisse o primeiro terreiro.
Recentemente constatamos que apesar da existência dos vários terreiros
na cidade de Areia Branca, esse tipo de culto ainda existe em paralelo as atividades dos
terreiros, com características e funções específicas, aos quais denominamos de “cultos
domésticos”. Partimos da hipótese de que, sendo os cultos domésticos a origem dos
cultos Afro-brasileiros na cidade, hoje também esses cultos constituem o processo inicial
de formação de novos terreiros, além de representar práticas cotidianas dos adeptos e
indicar novas formas de manifestação da religião afro-brasileira na contemporaneidade.
Analisando os cultos domésticos, estamos observando um campo religioso
peculiar, a partir da idéia de “níveis de organização de culto”, presente num recente e
inovador estudo sobre a formação do campo umbandista na cidade de São Paulo, onde a
estrutura do campo religioso é composta por terreiros e federações (ou pais de santo e
líderes federativos). Terreiros e federações constituem assim dois “níveis de organização
de culto” (NEGRÃO, 1996, pág. 325). Juntamente com terreiros e Federação, os cultos
domésticos apresentam-se enquanto níveis de organização de culto e formam esse
campo religioso constituído de relações onde entram em cena questões de poder,
legitimidade, autonomia e tradição dentro da religião.
Discutindo o campo religioso afro-brasileiro de Areia Branca e suas relações.
Na tentativa de mapear a estrutura do campo religioso Afro-brasileiro de
Areia Branca, consideramos duas formas de cultos de tradição Afro-brasileira: os Cultos
Institucionalizados, que são aqueles realizados nos terreiros, assim classificados por
vários autores como Lísias Negrão (1996), Reginaldo Prandi (1991), entre outros; e o que
estamos denominando em nosso trabalho de Cultos Domésticos, que são cultos privados
realizados nas casas dos próprios adeptos. Além destas duas categorias de culto que
formam o campo Afro-religioso da cidade de Areia Branca-RN, também está presente, tal
como é comum no contexto das religiões Afro-brasileiras, a Federação, enquanto órgão
responsável que institui, congrega e confere a legitimidade da religião.
Dentro dessa tentativa de mapeamento do campo Afro-religioso de Areia
Branca, buscamos compreender as relações existentes no mesmo. Nessa intenção,
utilizamos no sentido de uma analogia, as noções de “campo religioso”, de Pierre
Bourdieu, em sua obra Economia das Trocas Simbólicas. A partir dos papéis do corpo
sacerdotal, do profeta e do feiticeiro nessa obra, relacionamos os três “níveis de
organização de culto”, identificados em nosso campo de pesquisa,ou seja, Federação,
terreiros e cultos domésticos, procurando fazer uma breve análise da dinâmica estrutural
do campo Afro-brasileiro da cidade, levando em consideração as relações sociais
enquanto alianças e tensões. Observamos ainda a questão da legitimidade dos cultos e
dos trabalhos dentro desse contexto, que é o que norteia as relações existentes nesse
campo. Quando falamos de trabalho dentro da religião afro-brasileira, nos referimos à
prática do “fazer” religioso, onde trabalhar é um fazer religioso praticado para a evolução
espiritual dos médiuns e das entidades e, sobretudo para resolver problemas numa ação
imediata (PORDEUS, 1993).
Dentro do campo religioso em questão, a Federação constitui um conjunto
heterogêneo, com preocupações geralmente religiosas e institucionais, voltadas
principalmente ao público externo, e ainda um meio de se obter os diplomas a serem
fixados nas paredes dos terreiros, destinados principalmente à polícia (NEGRÃO, 1996).
Importantes estudos realizados sobre as federações e suas relações com os terreiros
concordam quando descrevem as federações como órgãos que conferem a legitimidade a
essas religiões caracterizadas como periféricas, permitindo a articulação destas com a
sociedade abrangente (LUCA, 2003).
Podemos dizer que a federação constitui um nível de organização de culto
no sentido “macro” ou “maior”, que procura de maneira abrangente estabelecer as bases
e a ordem dentro da religião, a fim de manter um de seus principais objetivos que á a
legitimidade dessa religião, diante da sua própria história.
Os Terreiros por sua vez, representam unidades articuladas, de caráter
mágico (NEGRÃO, 1996), mas, sobretudo de adoração e devoção. Estão voltados
especialmente para seu público interno, mas também para toda a sociedade que assim
deseje. São pequenos grupos, quase domésticos, que se congregam em torno de uma
mãe ou pai de santo; são autônomos e auto-suficientes para si mesmos (PRANDI, 2003).
Como nos foi possível constatar, os terreiros possuem uma organização de
culto estável, com calendários próprios, com dias e horários para a realização dos rituais.
Em suma, são espaços organizacionais nos quais se realizam os cultos (ASSUNÇÃO,
1999).
Os que chamamos em nosso trabalho de Cultos Domésticos, como já foi
mencionado, são cultos realizados na residência dos adeptos da religião. Várias são as
religiões que possuem rituais domésticos. Dentro da própria História podemos perceber
que cultos desta natureza já faz parte da realidade da vida religiosa do homem desde
outras épocas.
Se olharmos para a Roma antiga, por exemplo, veremos que os cultos
eram realizados não só em templos, mas também nas casas das próprias pessoas. A
religião romana naquele período histórico, formada pela fusão de tradições dos antigos
povos que habitavam a península itálica, tinha acentuado caráter doméstico, expresso
nas divindades protetoras da família e dos lares. Os cultos eram dedicados a inúmeras
divindades relacionadas a elementos naturais e a aspectos da vida humana. Preces,
oferendas e rituais cotidianos eram realizadas nas casas para pedir bom tempo ou boas
colheitas, e ainda, para cultuarem seus mortos e antepassados.
Atualmente, cultos de caráter doméstico são comuns nas religiões cristãs,
especialmente nas evangélicas e pentecostais, como uma forma de estender sua ação
evangelizadora e propagar a religião. Na cidade de Areia Branca-RN, observamos que as
religiões Afro-brasileiras também possuem na prática cotidiana de muitos de seus adeptos
uma forma semelhante de extensão da crença. Essas práticas constituídas em cultos, que
realizados na residência do adepto de maneira privada e particular, é caracterizado assim
como doméstico. Tais características remetem as primeiras formas de religiosidade
africana surgidas no Brasil.
A primeira religião africana conhecida no Brasil recebeu de norte a sul o
nome banto de “Calundu”. Apesar de referidos desde o século XVII é, sobretudo a partir
de meados de setecentos que os calundus são mais denunciados. Negros bantos já
praticavam seus calundus prestando “serviços domésticos nas casas” dos brancos na
Bahia, Rio de Janeiro e Recife (MOTT, 1986).
Os calundus eram práticas oficiadas por um especialista religioso, às vezes
com um número reduzido de assistentes que, incorporado por entidades espirituais
interagiam numa relação interpessoal com o “cliente” ou paciente; diziam venturas,
prescreviam remédios e faziam curas, assim também como malefícios. Contudo, em
alguns casos essas práticas também designavam grupos organizados com rituais
coletivos, envolvendo mais participantes do que simplesmente o curador-adivinho, ou
calunduzeiro, e seus clientes (NICOLAU, 2004).
Outro importante exemplo das raízes da religião africana no Brasil é o
“Acotundá” ou Dança de Tunda, um ritual religioso dedicado ao culto do Deus da Nação
Courá (Lagos, Nigéria), praticado no Arraial de Paracatu, Minas Gerais, desmobilizado no
ano de 1747 por um batalhão de capitães-do-mato. A dança realizava-se na “casa” da
escrava Josefa Maria, situada a meia légua do Arraial, onde vários negros forros e cativos
se ajuntavam para armarem à dança (idem, 1986).
Para Mott, a Dança de Tunda é um “proto-candomblé”. A dança apresenta
uma estrutura semelhante aos candomblés e xangôs contemporâneos do nordeste. A
própria localização da “casa de culto” reflete o padrão tradicional dos candomblés: nas
periferias das vilas e cidades, preferencialmente às margens de uma fonte ou córrego,
localização em parte devida à necessidade de amplos espaços para rituais e sacrifícios
ao ar livre, em parte também devido a sua condição de culto clandestino, alvo de
perseguições seja pelos inquisidores e capitães-do-mato, seja pela polícia ou médicos de
asilos mentais como ocorria há algumas décadas.
É possível assim perceber, que o sincretismo afro-católico e as religiões
Afro-brasileiras contemporâneas encontram suas raízes nessas práticas domésticas,
surgidas ainda no século XVII, que se desenvolveram principalmente no século XVIII.
Tanto o Acotundá quanto os Calundus realizados às escondidas nas casas e roças, com
altares de ídolos e oferendas alimentícias, práticas de curandeirismo ou adivinhação,
parecem ser mais que simples práticas de curas e feitiçaria; são antecedentes dos
candomblés surgidos no século XIX, e da atual religião Afro-brasileira.
Os “cultos domésticos”, dentro do campo que nos propomos a discutir, ou
seja, na religião Afro-brasileiras da cidade de Areia Branca, são rituais e cultos para
entidades, de caráter privado. Ao contrário dos cultos observados nos terreiros, esta
forma de culto não possui uma organização estável, ou seja, não possuem dia nem hora
certas para acontecer. Assim sendo, a principal característica de sua organização é a
“informalidade”, que reflete, sobretudo, a mobilidade de tempo e espaço dos adeptos e da
população a quem servem, cujos arranjos da realização dos cultos se recompõem a cada
trabalho.
Há na cidade um número exato desconhecido, mas significativo, de
pessoas que praticam cultos domésticos, quer dizer, que possuem seus “centros”
particulares em casa, com pequenos altares ou “pejis”. As casas dessas pessoas tornamse,
na realidade, um “proto-terreiro”, onde podem cultuar suas entidades e trabalhar por
conta própria. Geralmente essas pessoas já fizeram ou ainda fazem parte de algum
terreiro, e gostam de trabalhar em casa, como forma de por em prática suas crenças e
doutrinas, ou até mesmo por questões financeiras. Esses trabalhos realizados nos cultos
domésticos, assim como os dos terreiros podem ser de consultas espirituais, de limpeza,
defumação, curas, rezas, jogos advinhatórios, como os búzios e a cartomancia.
Dentro do campo apresentado, federação, terreiros e cultos domésticos,
através de seus atores sociais, desenvolvem suas relações a partir da legitimidade de
culto, onde entram em cena alianças e tensões, numa certa concorrência comum no
âmbito das religiões afro-brasileiras.
Quando numa religião existe a predisposição de se cumprir uma função de
associação e dissociação, um sistema de crenças está fadado a surgir como inferior e
clandestina, e desta maneira, passa a ser designada como profana ou profanadora. Na
oposição entre a manipulação legítima e a manipulação profana do sagrado, fica
dissimulada a oposição entre diferentes competências religiosas ligadas à estrutura da
distribuição do capital cultural. Assim passam a surgir às relações de concorrência que
opõem os diferentes especialistas no interior do campo religioso (BOURDIEU, 1972).
O capital simbólico representado pela legitimidade, opõe as formas de
realização de cultos no campo da religião Afro-brasileira na cidade de Areia Branca, entre
algo autêntico e algo ilegal. Essa legitimidade é conferida pela federação, que diante do
velho discurso da proteção e do reconhecimento que esta oferece, perante a polícia, as
demais religiões e a sociedade em geral, afirma seu papel de domínio dentro do campo
religioso.
O meio através do qual é conferida essa legitimidade é o documento de
“licença”, uma espécie de alvará de funcionamento, que serve como registro para regular
o andamento da religião nas cidades e no Estado. A licença, além da legitimidade dos
trabalhos realizados, assegura assistência e proteção social e jurídica para os que a
possuem. A licença representa ainda a “associação” ao grupo, uma “aliança” nas relações
desse campo. Quer dizer, todos os que possuem a licença estão amparados por lei e são
assim detentores de cultos legítimos, pois estão associados à federação, órgão
responsável perante a lei por essa função.
Para obter a licença e conservar seus benefícios, deve-se pagar uma taxa
periódica, prática comum em todas as federações, que cobram pela sua intermediação no
processo de registro. Uma vez efetivado o pagamento, as federações procuram evitar o
afastamento dos filiados, pois precisam da fonte de renda das mensalidades. Usam assim
do expediente de renovar anualmente as licenças que concedem aos terreiros que com
elas estiverem em dia, e fazem crer que a não renovação dos mesmos equivale à
cassação de seus registros, tendo os terreiros que arcar com o ônus da clandestinidade
(NEGRÃO, 1996).
Mas, o caráter protetor assumido pela federação, que coloca advogados a
disposição, embora sempre lembrado, tornou-se ocioso, cessada a repressão à religião, a
partir de meados do século passado (idem, 1996). Além do mais, nem sempre a aquisição
da licença e, sobretudo a questão do pagamento, é bem aceita e cumprida por todos e
isso acaba gerando conflitos e tensões dentro desse campo de relações na religião.
No que se refere ao campo em análise, os cultos domésticos não possuem
em sua grande maioria a licença. Os terreiros, ao contrário, possuem, embora muitas
vezes numa situação de inadimplência.
A filiação ou associação à federação é vista como necessária pelos
terreiros, pois a repressão policial está na memória dos adeptos, principalmente dos mais
velhos, sendo a federação um símbolo de proteção capaz de evitar o seu retorno. Isso
torna quase obrigatório à filiação e a aquisição da licença, na visão dos pais e mães de
santo e adeptos mais antigos.
A questão da licença entre terreiros e federação, à medida que os
associam numa aliança, onde a federação confere aos terreiros além da legitimidade, a
autoridade e a proteção perante o público e perante a lei, também provoca tensões no
que concerne ao não cumprimento dos deveres e acordos entre ambos. Unem-se contra
o que pode vir a interferir no bom nome da religião dentro da sociedade, sobretudo
quando se trata dos cultos domésticos, realizados por adeptos que realizam atividades
religiosas fora do âmbito dos terreiros, considerados assim como clandestinos e ilegais,
pois não possuem a licença.
Os cultos domésticos enquanto práticas e atividades religiosas
independentes, exercidas fora dos domínios da federação, são considerados como
clandestinos à religião. Por não possuírem a licença, a federação atribui a estas formas
de cultos o caráter da ilegalidade. Sofrem perseguições e críticas por parte da federação,
dando origem a relações de tensões entre ambas. E essas críticas e perseguições não se
restringem apenas à federação, mas partem também dos terreiros, que pelo incentivo da
federação, demarcam uma relação implícita de concorrência.
Para os adeptos dos cultos domésticos, a licença é vista como
desnecessária, devido a suas atividades religiosas não constarem de algo formal e
regular, como acontece nos terreiros, com toques e presença de muitas pessoas. Para os
terreiros, os cultos domésticos representam uma ameaça diante de uma oferta tão
diversificada, onde o caráter mais privado e particular destes, acentua a concorrência e as
tensões entre esses dois níveis de organização de culto.
O cliente é uma figura muito importante no ritual umbandista, é o objeto da
sua ação mágica, de seus trabalhos, sendo seu atendimento assim, o objetivo precípuo
da religião. A relação entre pai-de-santo e médiuns é sempre tensa, devido à
concorrência entre eles com relação aos seus trabalhos e atividades mediúnicas. Por isto
os pais de santo geralmente proíbem o trabalho dos médiuns fora do terreiro, preferindo
que estes estejam sob sua tutela. Assim sendo, todo filho ou médium é potencialmente
um rival do pai de santo, a partir do momento em que seus trabalhos e entidades são bem
aceitos e procurados pela clientela (NEGRÃO, 1996).
A preocupação principal da federação e de seus membros é convencer de
que as atividades religiosas sejam elas nos terreiros ou nos cultos ou domésticos,
requerem uma qualificação especial perante o público, ou seja, a licença. Persuadi-los a
obter esse documento enquanto uma prova legítima, uma segurança, e como única
condição de comprovar sua competência para a realização dessas atividades é o meio
que a federação encontra, na realidade, para tentar manter o controle e a ordem dentro
da religião, organizando a relação entre dominador e dominados no tocante as práticas
religiosas e suas representações.
O que ocorre na realidade é que o surgimento de novos terreiros, e mais
que isto, de novas formas de culto, como é o caso de Areia Branca, apresenta-se à
federação no Rio Grande do Norte como desordenado, complexo e problemático.
Desordenado porque a federação, única e tradicional, não consegue controlar; complexo
porque não se restringe mais a umbanda, pois o candomblé no Estado parece está se
desenvolvendo num ritmo relativamente maior que a umbanda atualmente; e problemático
porque, junto ao crescimento da religião se proliferam as práticas rituais não moralizadas,
com adeptos que não se preocupam em se filiar à federação ou que se ligam a esta
apenas para obter a licença, que permite o funcionamento legal do culto. E, sobretudo,
problemático porque concomitante a tudo isso, trazem de volta as velhas acusações e
denúncias, comprometendo o bom nome público da religião e sua legitimação (idem,
1996).
A federação é vista como um agente intermediário, entre a licença
pretendida e os que a busca. A licença apresenta-se como o único indício de legitimidade
dos cultos, e último recurso a ser utilizado para o domínio sobre os mesmos. Os que
possuem a licença estão qualificados e assim amparados pela federação, caso contrário,
quando não contam com tal documento são considerados clandestinos e ilegais. Não
gozam ou desfrutam dos favores da federação, mas também não estão sob o seu controle
e domínio, e esta parece ser na realidade, a grande inquietação da federação.
Conclusão:
Como pudemos ver ao longo dessa discussão, a questão da associação e
da dissociação fica clara em todos os casos relacionados: terreiros e federação,
federação e cultos domésticos, e terreiros e cultos domésticos. As relações de associação
e dissociação são possíveis tanto entre eles mesmos, quanto em oposição de uns aos
outros.
A licença, enquanto sinônimo da legitimidade religiosa na manipulação do
sagrado, outorgada pela federação, associa quem a possui ao mesmo tempo em que
dissocia quem não a possui. Apenas quem possui a licença é considerado um
representante da manipulação legítima do sagrado; do contrário, quem não tem a licença,
é julgado como representante da manipulação profana. Assim, a licença acaba
dissimulando nesse sentido as alianças e as tensões a partir da oposição criada entre as
diferentes competências religiosas dentro desse campo, sustentando-se na legitimidade
dos trabalhos religiosos.
Cultos domésticos, no âmbito das religiões afro-brasileiras, não é
certamente um objeto muito comum. É preciso reconhecer os poucos ou inexistentes
estudos referentes a essa forma de culto dentro dessas religiões, ficando claro a
importância de uma investigação como essa, pois ao se falar de religiões Afro-brasileiras,
os olhares estão geralmente voltados ao terreiro.
Acreditamos não ser necessário ressaltar a importância dos estudos sobre
as religiões Afro-brasileiras. Desde décadas, estas constituem o objeto de importantes
trabalhos e pesquisas no Brasil inteiro. Dentro desse contexto, apostamos no objetivo de
nosso estudo, de transferir um pouco mais o olhar sempre direcionado aos terreiros
quando se trata dessas religiões e observar também o dia-a-dia de seus adeptos, suas
práticas cotidianas, indo além dos limites dos terreiros.
Em suma, no campo religioso Afro-brasileiro, os terreiros constituem sem
dúvida, o “lócus” por excelência da produção e reprodução do sagrado (idem,1996). Mas,
no contexto de Areia Branca, os cultos domésticos devem ser concebidos de maneira
semelhante, por seu papel fundamental na gênese da religião Afro-brasileira da cidade,
sem cuja criatividade, talvez ela não existisse com a riqueza e diversidade que lhe é
característica atualmente.
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